João, arranjei finalmente uma manhã fria a condizer com a necessária disposição para escrever um largo texto sobre o tema que tu aqui lançaste. Como facilmente viste, este é um espaço de livre discussão, se bem que eu penso que o tema do aborto mereceu especial atenção porque quando foi altura de o discutir a maior parte das pessoas aqui presentes nem sequer se conheciam, logo, é até curioso defrontar algumas opiniões.
Para não me prolongar mais do que o devido, devo já esclarecer que a minha posição é a do Francisco Noronha na sua quase totalidade.
Vou então, como é hábito daqui do blog, "dissecar" lentamente o teu texto de 9 linhas (eheh) e tentar fazer valer algumas premissas minhas para te tentar mostrar o meu ponto de vista.
Sobre a tal notícia, é óbvio que ela não é falsa porque não a inventaste. As fontes do Jornal, que eu não sei qual é mas que espero ter sido um minimamente respeitável e credível, é que têm que tomar as culpas ou os louros. Tiraste, a meu ver, uma interpretação possível, que eu não partilho. Quando nesses casos, tenta mostrar o mais possível da notícia, porque é muito complicado argumentar e contra-argumentar baseado NUM título de UM jornal. Quanto ao aborto, em si, e em relação à campanha referendária, acho muito bem que tenhas tomado a tua posição, e a posição que tomaste, calculo que te informaste e que procuras fundamentar essa opinião que sustentas.
Na minha opinião, o tema do referendo nunca passou por ser permitido ou não abortar. O aborto voluntário é uma prática antiquíssima. Lá na minha "terrinha" ainda existem as velhas carquejas que vendem as plantas especiais para a meninas grávidas, cá na Cidade ainda existem as clínicas privadas, e da maneira que anda o mundo, ainda será assim por muito tempo.
A escolha do aborto é uma escolha moral. Logo, prende-se ao indivíduo, e isso está para além da esfera intervencionista do Estado. Uma vez ultrapassada essa esfera, temos de nos haver com um Estado Corporativista ou Fascista, ou Autoritário, ou etc.
Isto é o meu ponto de vista, enquanto social-liberal, neo-liberal, o que quer que me chamem, eu penso apenas é que a liberdade é o fundamento do Estado de Direito. Também me chamam Monárquico, mas isso não tem nada para aqui chamado.
As pessoas que votaram Sim, não votaram a favor do Aborto, João. Ninguém vota a favor do Aborto, ninguém quer abortar. É uma experiência deveras traumatizante, tanto para homens como para mulheres, se bem que ainda mais dura no que toca às parturientes. O que se votou, como disse o Francisco, foi a despenalização, (e agora acrescento eu) não a Liberalização. Nos dizeres agora do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que tomou uma posição muito bem fundamentada ao longo do debate.
O que se passa, a meu ver, é talvez um exagero da questão do Aborto. Tudo foi feito de forma a parecer uma enorme batalha cliché entre as forças do cristianismo e as do jacobinismo, e quem se mantivesse à baila que se agarrasse bem, pois ia haver mais.
Eu não tomei essa posição. Sou religioso na medida que um rapaz minimamente letrado pode ser. Não me acredito em tudo, mas procuro analisar as causas de certos factos, e sou acérrimo defensor da tolerância religiosa enquanto pedra base da Democracia. Sou defensor de um Estado Laico, não um Estado Laicista, porque isso já é deturpador das liberdades e garantias (art. 41º). Mas voltando ao assunto, critiquei arduamente a posição de muitos dos partidos de direita, também de muitos do de esquerda, critiquei a doença do país na altura, em que só faltava uma guerra civil entre os "padrecos fascistas" e os "assassinos de bebés", como eram as alcunhas injuriadoras dos adversários.
Quanto a Ciência, não sei de pesquisas nenhumas. A meu ver, nem precisava, eu acredito que possivelmente um feto humano pode ter o estatuto de Humanidade... no entanto, o legislador João, não é um cientista. Eu, que me viro para uma perspectiva historicista do Direito, e naturalmente jusnaturalista, recuso-me a observar as coisas desse ângulo. O legislador é um cidadão, antes de tudo. E deve ouvir o cientista em matérias de Ciência. Mas a decisão é dele, tomada com o melhor proveito para a população e tendo em vista a sua felicidade. A lei diz-nos que o nascituro, o que ainda não nasceu, não tem personalidade jurídica até à data do seu nascimento (artigo 66º do CC). No entanto, isso não leva a que os seus direitos não sejam em parte observados, sendo activos no que toca a doações (artigo 952º) e na capacidade testamentária (artigo 2033º/2 alínea a). Os romanos consideravam o nascituro de forma semelhante, reconhecendo a sua futura humanidade (e já explico este "futura humanidade") dotada de certos efeitos jurídicos. Não era, no entanto, considerado pessoa (aqui está a explicação). Não está "in rerum natura", é "mulieris portio vel viscerum".
Este é um dos muitos exemplos que a perspectiva histórica te pode dar, acredita que a romanística é doce quando comparada com as duras leis dos germanos, e que podemos seguir, é claro que sem cometer a falácia de não actualizar textos, e de perceber que a humanitas dos romanos não é a mesma que a dos nossos dias.
De concluir que o aborto é uma prática fora do alcance do Estado, e este não a pode legalizar nem ilegalizar. Através da prática costumeira, tornou-se um dado adquirido na nossa sociedade. Não está ligado directamente aos direitos e garantias, mas faz parte de um estatuto humano garantido pelo povo, e por muito que implique o desaparecimento de outra vida, é, no dizer do Francisco, parte do "mundo egoísta e hipócrita" em que vivemos, é também uma necessidade psicológica, é também uma prática justificável em vários casos.
A acção do Estado nestes casos é somente aplicável no que toca ao asseguramento da comodidade do cidadão, e prevenir que este possa sair denegrido pela sociedade ou prejudicado por uma operação médica clandestina, no caso de muitas mulheres, da própria morte.
Aos acontecimentos em si, tenho poucas palavras. Acho que sinceramente foi um problema que veio "fora-de-mão". Num país em envelhecimento, as energias do Estado deviam antes ter sido despendidas na defesa da natalidade, nas ajudas aos pais e instituições, aos prémios de natalidade, aos incentivos. A saúde pública não é um negócio, e foi corrigida uma situação há muito necessitada de ser corrigida. No entanto, pergunto-me se não teria sido mais prolífico aplicar as enormes somas de verbas nos exemplos atrás referidos, e um pouco mais tarde tratar de rectificar a situação do aborto em Portugal.
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1 comentário:
Agora que descubro este blogue (e boa descoberta foi) é que leio posts publicados já há algum tempo.
Sobre a questão do aborto, antes de mais, três apontamentos antes de me alongar:
i) para esclarecer a minha posição desde já: se em Fevereiro de 2007 já tivesse 18 anos, teria votado Não;
ii) o Código Civil não é tão linear quanto foi descrito no post;
iii) o sentido do voto naquele referendo, a meu ver, é exclusivamente político e não moral.
Quanto ao CC: à letra, na verdade, "a personalidade jurídica adquire-se no momento do nascimento completo e com vida", pelo que, a contrario, se entende que quem ainda não nasceu não tem personalidade jurídica, logo, os nascituros não têm personalidade jurídica. No entanto, de forma breve, enuncio alguns acrescentos feitos pela Doutrina:
i) o prof. Capelo de Sousa fala no direito à vida intra-uterina;
ii) o prof. Pedro Pais de Vasconcelos defende que a personalidade jurídica começa com a concepção e que no art.º 16º do CC deve ser entendida a capacidade de gozo;
iii) os profs. Menezes Cordeiro, Leite de Campos, Paulo Otero e Oliveira Ascensão entendem que o ser humano concebido não é menos pessoa do que o já nascido, pelo que deve ter os seus direitos resguardados.
Quanto à questão de entender que o voto no referendo tinha como base a orientação política, devo dizer o seguinte: conheço pessoas que têm exactamente a mesma posição que eu em relação à defesa da vida e que defenderiam exactamente o mesmo que eu perante situações em que a questão do aborto se colocasse (recorrendo a ele apenas naquelas circunstâncias anteriormente previstas na lei). Nesse aspecto, são tão "conservadoras" quanto eu, e mesmo que vivessem dificuldades económicas, não recorreriam a um aborto. É o nosso "conservadorismo moral", se quiserem. Moral!
No entanto, enquanto eu votaria Não, elas votariam/votaram Sim. Porquê? Porque são politicamente liberais, porque entendem que o Estado deve ter uma actuação mínima na sociedade e as decisões sobre o aborto e outras temas que tais cabem a cada indivíduo.
Entendo também que o Estado não deve ser omnipotente e todo-poderoso, mas acima de tudo parece-me que o Estado tem a obrigação de zelar pela vida humana tal como a CRP prevê (art.º 9º/b), seguindo os seus princípios (art.º 24º). Política!
Ora, e perante todas as situações descritas pelo Francisco no seu post, é óbvio que criminalizar o aborto é um atentado à dignidade da Mulher. Mas vejamos: como é que se acaba com este drama? Proibindo os abortos pura e simplesmente ou lutando contra as causas dos abortos?
Votaria Não porque o Sim, para mim, significa uma desistência. Desistir de lutar pela melhoria da qualidade de vida e da instrução dos cidadãos. O Francisco fala no "direito de interferir nas decisões que só dizem respeito a quem as suporta", e bem! E é por isso que não defendo um Estado totalmente mínimo, mas sim um Estado que tenha preocupações sociais e que esteja na linha da frente da defesa dos mais fracos.
Por isso, concordo inteiramente com o Manel quando defende que muito mais ganharíamos se todo o dinheiro fosse canalizado para apoiar aquilo que potencialmente evita os abortos.
Não posso deixar de concordar com o Francisco quando critica a campanha do Não. Eu próprio me revoltei em casa e na rua (nas acções de campanha em que participei) ouvindo defensores do Não, com argumentos profundamente tristes, retrógados, dizendo que "todos temos direito à vida", etc, etc. Mas também devo dizer que me revolta ver que os defensores do Sim intervieram por duas vezes: em 1998 e em 2007. Ou seja, na hora do voto! De resto, quem acolhe crianças abandonadas, quem apoia mulheres grávidas jovens, etc., são maioritariamente associações e organizações que estiveram pelo Não.
Em suma, entendo que a regra de não penalizar é má. A solução passa, primeiramente, por lutar contra as causas dos abortos (olhe-se para os aumentos de impostos, que consequências indirectas têm nestas questões) e apoiar ao máximo. Mais: uma mulher que aborte ao fim de 10 semanas é tão criminosa e punível como uma mulher ao fim de umas 6 segundo a anterior legislação.
Fico com a sensação de que tinha mais para dizer, mas nem quero imaginar a extensão que este comentário vai ter e quem terá paciência para o ler.
Agradeço a disponibilidade aos putativos leitores! :P
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