sábado, 5 de janeiro de 2008

entre florença e roterdão

Em resposta ao meu amigo "ultra-positivista "Henrique Maio, depois do seu ensaio sobre Maquiavel.
Nunca vou conseguir observar a obra de Maquiavel como algo infinitamente sábio ou perdurável. O meu amor pela história e pelo pormenor, vão sempre levar a que eu procure a contextualização da sua obra. De facto, a corrente política de Maquiavel é extremamente centralizadora. Ele preconiza a total dependência dos súbditos ao seu soberano, dependência essa conduzida por ele, bem como outros aspectos ligados à centralização do poder, como a nacionalização do exército, e também de uma política externa agressiva e activa ao mais alto nível. Maquiavel defende um Chefe de Estado dominante, seguro na sua soberania e, admita-se, à prova de moralidade no que toca ao jogo político.
O que se passa é que a época de Maquiavel é uma época de mudança, uma época em que os soberanos europeus usavam de todas as artimanhas para enfraquecer os órgãos dentro do estado que confrontavam a sua soberania, normalmente a Igreja e a nobreza feudal.
E isso não é difícil de perceber porquê: os Estados mais estáveis e poderosos da altura, aqueles cuja tolerância e progresso técnico eram mais visíveis devido a uma centralizada acção do Estado, eram os países ibéricos (Espanha e Portugal). A França debatia-se em lutas entre a realeza e a nobreza, das quais, ao contrário do que acontecerá na Polónia e no Império Germânico dos Habsburgos, sairá vencedor o Rei. Maquiavel era um italiano patriótico, e a julgar pelo seu livro cheio de referências a autores romanos clássicos (Virgílio) e a pré-renascentistas famosos (Petrarca), era já portador de um sentido de nacionalidade italiana muito avançado para a época.
A sua obra é, para mim, nada mais do que um manual exacto para o político anterior à obra de Jean Bodin, logo, para o político anterior à ideia de suserania estadual implementada e convencionada. De facto, ele viveu no tempo de fronteira entre o Estado Medieval e o Moderno. Numa época de réis cavaleiros, como Carlos V de Espanha, e réis políticos, como Francisco de França, ambos com sucesso relativo na centralização dos seus estados. Até ao generalizar do estatuto do rei na Europa ocidental, nada podia assegurar o poder centralizador e centralizado do soberano.
Mas sem divagar, o grande objectivo da obra de Maquiavel não é o de formar políticos "maquiavélicos" e amorais. É o propósito utópico e quase irrealizável para a época, no entanto exposto de forma tão pormenorizada e planeada, de unificar a Itália e expulsar as influências espanholas e francesas . Bela contradição, para a caracterização normal que se faz de Maquiavel, não parece?
Hoje em dia, a obra de Maquiavel não pode ser tomada à letra, e só pode ser usada em certos momentos da vida política e social, cada vez mais raros, e mesmo assim necessitando de uma interpretação e adaptação cuidadosa. Da mesma forma que a ciência política acompanha a tendência das épocas, também o discurso centralizador e megalómano de Maquiavel começa a desvanecer. Os tempos são de descentralização, e de resto, faz-nos falta o estadista de Erasmo, o símbolo não de um político cristão, mas de um político capaz de dar o exemplo. E é essa talvez a grande falta do nosso tempo.
Posso te mostrar, Henrique, dois exemplos de Estados que agiram como Maquiavel acha recomendável. O Império Romano e os EUA. Souberam escolher os partidos das guerras, não se ficaram pela neutralidade, foram ousados mas prevenidos, semearam a discórdia entre os seus inimigos para em seguida os deglutir. O próprio Maquiavel fala de Júlio César como modelo de político, e de Octávio Augusto como modelo de príncipe. No entanto, um caiu e o outro cairá pelas mesmas razões, devido às suas políticas e escolhas: a completa imoralidade das classes políticas tornou-se depressiva e generalizada, e o poder militar foi demasiado exigente e obrigou a que o Estado perdesse o controle dele, pousando-o nas mãos de mercenários.
O nosso próprio país serviu de exemplo para Maquiavel, mas sempre se seguiu uma política polivalente entre Sto. Agostinho e Maquiavel. De facto, 800 anos de história (quase) permanentemente independentes ao lado de uma das nações mais poderosas da Terra não se deveram a abraços e beijinhos.

Resumindo, a obra de Maquiavel não pode, a meu ver, ser confrontada directamente com a de Erasmo. Ambas têm a sua contextualização, mas ambas se tornaram importantíssimas para a história da humanidade. E agora, observando a situação de Portugal, vejo que a posição de Maquiavel deve ser unida à de Erasmo. Maquiavel imprime no político uma energia necessária e uma perspicácia rara, mas Erasmo não deixa que a sua acção se torne repressiva e intolerante.
Vejo como a grande falta do nosso país a falta de um Chefe de Estado verdadeiramente prestigioso para os cidadãos. Mas em contrapartida, acho que o homem político deve ter mais em atenção a moral democrática e os valores de cidadania e o pluralismo político e ideológico, agora com perfeitas condições para ocorrerem estavelmente, e menos com o jogo político e a procura de poder e manutenção dele.

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